Tecnologia é arte?Tecnologia é arte?
A palavra tecnologia tem sua derivação etimológica na palavra τέχνη (pronuncia-se téchne), do grego arcáico. Essa palavra normalmente era usada para se referir à prática da construção de artefatos levando-se em conta apenas o método racional da produção de algo com determinado propósito. Seu Deus era Hefaísto, figura mitológica que provia os demais Deuses gregos com artefatos de metal, daí sua imagem segurando um martelo ao lado de uma bigorna, entre outras tralhas. Estes “utensílios” criados por ele (no melhor estilo custom shop) como o cinto mágico de sua esposa Afrodite (que teve de casar com ele como punição de Zeus, coitado, ele era muito feio) e a armadura de Aquiles (não confunda com o Brad Pitt), podem ser considerados apenas artefatos tecnológicos de um desenvolvimento racional ou são obras de arte de um gênio, ou melhor, de um Deus?
LA-2A
Tá certo que exagerei um pouco nesse começo, mas com certeza existe por aí um monte de pedaços de plástico na forma de teclados e pedaços de pau na forma de violão e que são mais próximos de serem chamados de “estrumentos” musicais do que qualquer outra coisa. Também é certo que estamos rodeados de outros tantos que com certeza passaram muito longe do Olimpo, mas, nesse mar de porcarias, existem ilhas que são objetos com personalidade e que realmente têm o dom divino da arte, que é o de criar emoção. Dentre estes há aqueles que são simplesmente lindos pela sua simplicidade e genialidade, outros pela sua complexidade e todos eles podem receber tranquilamente o status de peças de museu, residindo ao lado de um Botticelli ou no mínimo em alguma ala do MOMA.
Com certeza há um gênio por trás destes equipamentos fantásticos, alguém provavelmente obcecado e dedicado à extensão das margens do conhecimento e com a busca incansável pelo sublime sem se preocupar se seus produtos vão sair aos fardos de alguma prateleira de supermercado. O ensejo motivante destes gênios é a busca pelo diferente, pelo perfeito, pela vanguarda e está em tudo aquilo que resume-se em uma coisa maravilhosa que não tem classificação de tão abstrata, mas que podemos entender como algo que mora acima da linha limite da normalidade (quem quiser entenda Threshold) e que irão transformar a vida simplesmente pela sua existência e fazer parte da história. Arte?
Na Arquitetura, a vertente que mais se assemelha a esse pensamento é a Modernista, intensamente vivida na escola Bauhaus, fundada por Walter Gropius. Alí buscava-se no período pós-guerra um novo design baseado no máximo da eficiência com o mínimo de interferência, onde a forma é simplesmente fruto da função; é o racionalismo funcional – entende-se “Less is More”. Um dos grandes arquitetos desse movimento foi Mies Van der Rohe, que inclusive foi diretor da Bauhaus, e seu estilo clean é absolutamente musical, daí a incrível relação música e arquitetura, enfim, como aqui não é a revista Arquitetura & Construção, no áudio temos um excelente representante deste setor filosófico: o compressor LA-2A da Teletronix (que depois virou Urei e atualmente é reeditado sem alterações pela Universal Audio). Basta passar um sinal por ele que a mágica acontece e até desligado ele tem um charme.
Podemos até dizer que, assim como alguns vinhos, este compressor tem taninos maduros, notas achocolatadas e final aveludado, e acedite: estamos falando de um equipamento mono com apenas um In e um Out e dois botões operacionais no painel com a única função de reduzir a dinâmica do sinal que passa por ele.
E quando abrimos sua tampa frontal o que aparece? Um lindo esquema de montagem ponto-a-ponto meticulosamente organizado. Imediatamente me vem à cabeça a imagem de seu criador, submerso em pensamentos dedicando-se à produção de algo que seria revolucionário na década de 60 e incrivelmente desejado nos dias de hoje.
LA-2A aberto
Porém tome cuidado com o culto à technologia! Existe um precipício que separa audiófilos de audiotas e estes últimos são facilmente influenciados pela falsa estrutura filosófica que nosso meio cria, tipo: É caro então é bom!
Obviamente têm coisa cara boa mesmo, mas tem muita coisa cara ruím. Neste mundo, onde temos que levar em consideração a influência do dinheiro no quesito capacidade é fato que existem por aí estúdios cheios de porcarias! Visitei vários estúdios onde há pilhas de tranqueiras que acendem só para impressionar clientes; em outros vi equipamentos caríssimos ligados de forma errada (quando estavam ligados) e com cabos de origem duvidosa, outros com periféricos inadequados ao trabalho pretendido e no pior dos casos, estúdios repletos de equipamentos por questão de status, mas na hora do “vamos ver” a gravação vai no Vegas* mesmo porque o cara não sabe usar o que tem. Ora! Não seria o natural aprender as possibilidades e recuros para depois comprar certo boas coisas excluindo o impulso? Ser um profissional realmente capacitado e ser o diferencial? Ter equipamentos corretos que não foram comprados apenas para servirem de fachada aos abastados de dinheiro e fracos de discernimento?
Nesse cenário tem muita gente produzindo muito mal com um monte de excelentes equipamentos e muita gente gravando muito bem com um ou dois equipamentos.
Não se esqueça que muito mais importante que a marca em si, nos equipamentos que realmente tem personalidade, o maior diferencial está na história de seus criadores, é o caso de Jim Lawrence (criador do circuito de ganho de redução do LA-2A, o elemento óptico T4), Bill Putnam, Robert Moog, Rupert Neve, John Hardy e mais alguns Deuses mitológicos. Estes equipamentos devem ser cultuados sim, pois na verdade o que estamos cultuando é um cérebro ultracapacitado que criou uma obra de arte e não apenas um conjunto de capacitores e diodos que fazem alguma coisa.
Você pode achar que vivemos em um mundo injusto, onde, a cada dia que passa, somos inundados com “revamps” de produtos que fazem a mesma coisa e que podemos comprar ou que estamos vivendo o eterno desejo onírico e inútil de adquirir algum equipamento sério que realmente faça o som sair gordo e quente que nunca acontece, pois o cheque especial não tem saldo, tem escola do menino, o pneu tá velho, a limite do cartão aumentou…
Ledo engano! Tecnologia não é a única solução. De nada adianta comprar uma TV Full HD LED 3D 480Hz e ligar um conversor UHF nela recebendo sinal da antena parcialmente despedaçada no telhado! Não vai ser o violão de pinho canadense, jacarandá da Bahia e ébano indiano que vai diminuir as horas necessárias de estudo e fazer a bachianinha sair melhor dos seus dedos. Não adianta investir em um Pro Tools HD para digitalizar sua antiga coleção de fitas cassete que nem eram de dióxido de cromo. As únicas coisas que vão acontecer são: ser possível gravar em altíssima qualidade um sinal pobre, tocar notas erradas lindamente projetadas no entorno e assistir chuviscos em 1080p. Esqueça o equipamento em um primeiro instante e invista em cultura e depois vá buscar credibilidade naquilo que escreve a história do áudio, e acredite: Quando chegar a hora de você conseguir compará-los (e ela chegará!), coloque um LA-2A em seu setup meticulosamente estudado e constituído e proceda da seguinte maneira para comprimir maravilhosamente seus inputs captados magnificamente, especialmente vocais:
- Ponha todos os dois botões centrais à esquerda na posição 0.
- Ligue o LA-2A através da chave on à direita. (Estou aumentando a quantidade de passos só para parecer mais complicado!)
- Coloque a chave da esquerda na posição Compress caso queira comprimir e não limitar. Este ajuste detém uma curva de compressão mais suave.
- Coloque o botão da direita na posição Peak Reduction para que o VU exiba a quantidade de ganho de redução (eu adoro esse termo: ganho de redução!). A agulha deve ficar em 0 quando não há sinal passando pelo compressor, se não estiver estacionada nesta posição desrosqueie a porca do parafuso do lado esquerdo com uma chave de boca e vire lentamente o potenciômetro metálico com uma chave de fenda para calibrar a agulha do mostrador em 0, reaperte levemente a porca com cuidado.
- Abasteça a unidade com sinal de áudio e aumente o botão Peak Reduction (o grande da direita) até obter a quantidade desejada de compressão, vá monitorando o VU onde a agulha irá movimentar-se da direita para a esquerda (lembre-se que estamos monitorando o ganho de redução) até atingir os valores pretendidos. Nesta etapa não ouve-se nenhum som.
- Aumente o botão Gain (o da esquerda) até o volume estar adequado, se você quiser mude o botão de visualização do VU para a posição Output adequada (+4 ou +10) para medir a intensidade do sinal de saída do compressor.
Resumo jocoso:
- Aumente o botão Peak Reduction.
- Aumente o botão Gain.
Realmente este compressor óptico valvulado é um legítimo representante do paraíso tecnológico que traz em si a personalidade de um gênio que fez arte através da tecnologia e vale ser admirado como objeto de arte, mas como todo equipamento, ele não é útil em todas as situações, assim como alguns microfones e prés default também não são ótimos para todos os vocalistas. É por isso que os estúdios de verdade sempre necessitam ter muitos equipamentos (e bem caros na sua maioria), mas não fique triste, para nós, meros mortais assalariados e profissionais liberiais, deixo uma motivação em um ditado popular remixado: Quem estuda, trabalha e economiza sempre alcança! Abraços e até a próxima!
* O Sony Vegas é um software de edição de vídeo e que é erroneamente usado para sequenciar áudio, apesar de fazê-lo adequadamente sua estrutura para tal finalidade não é tão intuitiva como os softwares de produção musical, o software adequado deste fabricante para produção de áudio é o ACID Pro.
Conteúdo extraído do blog do Daniel Raizer.
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